Eu postei meu lamento a tantas vidas que precisam ser arruinadas pela "esquizofrenia", talvez por falta de escuta, de cuidado e de "intervenção" precoce, o mais cedo possível.
Estou com Winnicott quando ele diz que as doenças mentais mais graves referem a uma deficiência ambiental proporcionalmente grave e precoce. Entendo, certamente, o "grave" e o "precoce" como termos insuficientes e mal esclarecidos, mas tendo a aproximá-los de intolerável para as tendências antissociais e impensáveis para as psicoses. Algo como os jogos intoleráveis que vemos em famílias que geram pessoas criminosas e jogos impensáveis que vemos em famílias de pessoas "esquizofrênicas". Não raro me vejo às voltas com o pensamento: por tão pouco, por algo tão ínfimo, por tão pequeno trunfo, essas pessoas são capazes de sacrificar não só a saúde mental de seus filhos, mas, muitas vezes, suas próprias saúdes mentais e físicas?
O afeto de um terapeuta é importante ferramenta clínica, mas precisamos todos de irmos além do lugar comum de nosso afeto mais imediato. Muitos de nossos colegas estão, hoje, às voltas com o cuidado clínico de pessoas que cometeram crimes considerados como "hediondos", talvez porque conseguimos ver as pessoas - e os sistemas - para além de nossos afetos imediatos em relação aos crimes. Empatia com os criminosos, em alternativa à empatia às vítimas, talvez? Podemos ver como um grande auxílio às vítimas um estado que promulga e promove a Lei Maria da Penha, por exemplo, como o nosso? Sim, ainda há grandes avanços a serem feitos em relação ao cuidado de vítimas de crimes, sem dúvida. Mas há poucos os que se comprometem ao cuidado dos criminosos. Ou dos loucos em geral, seja lá se cometeram crimes audíveis o suficiente para infringirem a lei, ou não.
Lembro-me de me considerar, por muito tempo, uma "terapeuta de família por outorgação". Era "obrigatório" que nós fôssemos terapeutas de família, em ordem a entender minimamente, na clínica, essa coisa de alguém não ser louco porque quer - mas sim por não haver alternativa. E, durante esse tempo, aquela empatia pelo "pobre louco que não tinha escolha" e transformou em um ódio em relação aos sistemas que o transformavam em louco. Esquizofrênico ou psicopata, as classificações psiquiátricas foram ganhando o sentido de estruturas que serviam a um propósito político sinistro.
Depois de trabalhar com algumas famílias e compartilhar com elas um pouco do sofrimento sistêmico a que todas elas estavam comprometidas, algo se revelou para mim. Não somente o concreto do que Freud dizia que era impossível "terapeutizar", mas que o necessário era cuidar o mais cedo possível. Não à maneira dos psiquiatras da intervenção precoce, certamente, porquanto estes se preocupavam em intervir no desaparecimento de sintomas em um indivíduo bastante jovem, mas de cuidar de pessoas, de famílias, de seu convívio social e econômico, muito antes da necessidade do aparecimento de sintomas.
Hoje um amigo me perguntou - "sim, cuidado precoce, legal. Bom que a maior parte de nós não tenha que se ver às vezes com problemas tão complexos quanto a natureza da realidade ou se nós estamos mesmo neste mundo. Mas a humanidade nunca se conteve com isso. O sofrimento grave é realmente algo horrível e devemos pensar se há algo passível de mitigar as enormes angústias que levam pessoas a cometer tantos crimes horrendos quando o assassinato de Coutinho. Mas há grandes mentes, grandes almas, que levaram seu sofrimento ao que se pode chamar de Nirvana. Ou ao que Kurt Cobain fez com sua pobre curta vida".
http://kosmo.hubpages.com/hub/Was-Kurt-Cobains-Death-a-Group-Effort |
Eu não me arriscaria a dizer que eu poderia ter intervindo - ou cuidado - precocemente na vida de Kurt Cobain - ou de qualquer pessoa. Acho que a questão que meu amigo levantou é mais ética - como uma ética em combate à moral que se esconde sob a fachada do "poderíamos", ou "deveríamos". E acho que ele me denunciou com amor o que ele espreitava no meu discurso: uma moral facilmente detectável.
Alguma coisa na vida pode ser "melhor" ou "menos sofrível" do que o suicídio ou o homicídio? No mesmo dia em que vi anunciada a morte de Coutinho, Philip Seymour Hoffman também foi anunciado morto. Sem o mesmo mistério da morte do cineasta, a causa mortis do ator estadunidense foi anunciada claramente: overdose de heroína. Morto aos 46 anos, o ator segue uma longa lista de pessoas que eu admirava e que foi morta pelo mesmo motivo. Um tipo diferente de suicídio do que a tentativa do filho de Coutinho, ou de Kurt Cobain, mas inegavelmente, uma negligência tão grande quanto. Como a de Amy Winehouse, e da galera dos "27".
https://www.youtube.com/watch?v=toNVTf7Lqig |
Em uma tentativa humilde de compreensão da loucura humana que perpassa o crime, o suicídio e o abuso de drogas, não posso deixar de ver laços entre os alienados. Mortos talvez por alienação - não que nós todos não morramos disso, mas deixemos os fatalistas de lado, por enquanto. O fato é que pessoas muito jovens foram mortas - talvez por falta de cuidado, talvez por terem perdido as esperanças de encontrá-lo. Algumas sem tanto loucor trágico, algumas mortas em vida. Não podemos mais intentar encontrar alguma "causa" individual, em algo que há de ''errado" nessas pessoas.
E quanto à cura? Só a mudança muito longa, aquela que vai até os macrosistemas ou mesmo ao macrocosmo? Bem sei que, em mim, a cura/cuidado remete ao ideal, alguma redenção benevolente antes da morte que dá algum sentido à existência. Será que mitigar - ou mesmo elaborar em níveis muito primitivos - o sofrimento impensável de pessoas cuja existência é radical demais seria mesmo algo passível de atingir - ou mesmo desejável?
Poderia eu - "normal" que sou - ter intervindo na família de Kurt Cobain a ponto de ele ter desistido da música - sombria - e se tornado contador, vivendo uma vida medíocre, mas feliz? E se eu o pudesse, o teria feito, mesmo sabendo da imensa influência, transformadora individual e historicamente, que sua morte provocou em milhares de jovens, incluindo a mim mesma? E quanto aos Coutinhos? E aos Nietszches ou Kierkegaards, ou Morrisons? Cairemos em um redundantismo do tipo: é um gênio, deixe-o sofrer e nos beneficiemos quando ele morrer? Como escolhemos os "gênios" e os "pobres coitados" de quem só queremos afastar o Nirvana?
Que a morte ou o ostracismo do esquizofrênico crônico são legítimos, não tenho dúvidas. São resultado de um longo processo "esquizofrenogênico". Só posso me recordar do caso acompanhado por Winnicott em que uma jovem pede sua ajuda clínica - não para ajudá-la a não cometer suicídio, mas para ajudá-la a cometê-lo pelo motivo certo. Winnicott diz não ter dado conta disso, tamanha sua crença na vida e no amadurecimento: sua paciente acabou "morrendo pelo motivo errado".
Eu não sei. Mas de "eu deveria ter feito" em "eu não deveria ter feito", eu só tenho o momento presente. E um simples " isto me causa muita angústia, por isso..." não me parece o suficiente.